19 agosto 2007

Gume

Pelo fio da madrugada
vem repleta de frio uma insónia dura
que basta.
Adivinho voltas e mais voltas
suores frios, calores repletos
viagens suicidas pelos recantos da alma
que fica com todos os poros abertos
e olhos de filtros.
Tomara eu ser o condão que acende o lume do sono
e levar assim comigo todos os sonhos possíveis
ao encontro de um só gesto
quando se fecham os olhos
e o corpo no repouso fica a leste.
Tomara eu ser qualquer varinha
que pudesse realizar no imediato os desejos
pintar os retratos, realizar as peças mentais
no palco da carne e pele e suor e sangue...
Tomara eu ser uma cama maligna
que do mal fizesse o melhor dos cenários
um antro perfeito necessário
da riqueza dos indomáveis pecados insaciados.

17 agosto 2007

Mortificar

Esqueci-me de existir
Perdi a consciência total dos meus medos
Das minhas visões
Do espontâneo fotográfico

Peguei numas malas cheias de nada e parti
De calças rasgadas
De bolsos vazios
Com palavras na mente apenas

Palavras de demência
Actos de insanidade
Feitos de loucura
Obras levadas ao extremo fugaz da alienação

Da modificação profunda da personalidade restou um lençol manchado de sangue
O lençol daquela noite em que te mortifiquei
Guardo ainda o punhal
Fatal, mordaz e pleno de desarranjos físicos

Ouço o teu grito horrendo noite dentro
Mas uma alma pervertida como a tua não merecia se não esse porvir

Hoje escondo-me com o outro homem na floresta
O outro que uma noite virá para me mortificar
O outro que ligará de novo nossos caminhos
No fado, a muitos de nome destino

16 agosto 2007

Tragédia

Não sou mais a pasta espinhosa que me comprometeu
Não sou mais o corpo alado de outras noites
De tempos de outrora
Não sou mais o livro ou o romance
Não sou mais o espectro de um filho de Dante
Inacabada a indolência vacilante de Deus

Não sou mais o vinho em tempos de cólera
Não sou mais o arquivo distante de um sonho

Não sou mais a névoa ou o condor
Não sou mais a fragilidade ou a dor

Sou antes o irascível divino
A tragédia comestível
As finas recordações de Ares e Hades

Sou a mitologia de Ártemis
E a violenta complexidade

Sou a divina tragédia de um teatro vistoso
De envelopes de lacre nos assentos
Com a sentença do meu fim.

Alter-Ego

Voluptuosa inércia
Esta arte de olhar para o vazio
De desaparecer no meio das nuvens
De parecer vestida e estar nua
De ser caule com pétalas transparentes

Fecho os olhos
Estou na ponta mais ocidental do local chamado abismo
No local onde todos caminham para morrer
No local onde decidi não ser morta por mim

Revela-se o meu alter-ego que me transcende
O outro eu de mim que revela o que fui dentro do que eu sou
Parece-me esbelta a minha visão
Desfocada, como se olhasse através de vidros foscos
Inerente a eu

És eu?
Pergunto-lhe…

Mas belíssima esfumou de uma presença e me arrastou com ela

14 agosto 2007

Se o amor que te atormenta é todo o torpor de uma vida
Jaz por ora enquanto anoitece a madrugada
E enverga-te de ouro para saudar o novo que advém.

Vales

Quero ocultar-te, na noite do baile dos espelhos
Com as mãos já esquartejadas pelo odor másculo que emanas
Ensanguentadas e belas, de cor carmim seu brilhantismo

Vales de ervas, vaso de vidro

Copiosamente vertes o leite por defronte de meus seios despidos

Vales aninhados na condolência violenta
Mascarados de esplendor opalino
De transparências cristalinas

Vales de ervas, vaso de vidro

Vem crescer comigo na janela da alba que desponta
Que não é cobiça a minha de viver na fuga e estar sozinho
Vem ler minhas páginas bordadas a fios cadentes siderais
Folheia meus rostos que são três
O crescendo, o único e o divisório

Folheia os meus vales de ervas
E num vaso de vidro dá-me a conhecer ao mundo.

A noite de Paris

Costumava esperar-te
Quando entravas pela janela do meu quarto
Por entre cortinas de nevoeiro
Por entre balas perdidas na luta que eclodia lá fora

Costumava abraçar-te
Quando enleavas os teus dedos pelos meus cabelos
Te dizias saudoso
E teus olhos brilhavam mais que as luzes da noite de Paris

A noite de Paris…

Costumava amar-te
Por entre lençóis de cetim
Bordados antigos feitos pela mão de minha mãe que já partiu
Pelas frestas de meu coração

Costumava acordar-te com o esplendor de um sorriso

Costumava beijar-te num explodir de sentidos

Costumo agora adormecer na noite solitária
Onde antes estavam dois só me encontro eu
Agora não costumo
Faço-o para mim
Apenas

13 agosto 2007

A solidão intermitente

A solidão intermitente

É como se qualquer coisa se rompesse subitamente e fizesse cair a vida em pedaços

Como dar-te um golpe e mergulhar no teu interior
Como beijar-te o olhar trespassado a espada de fogo
Como venerar teu coração já morto
Tua pele já extinta
Faminta
Putrefacção alardeada

As paredes negras da existência fúnebre
Despenteada

O norte rendido ao sul
O centro ao externo
A inércia ao mastigar do tempo

As vestes contrárias
O fio voluptuoso laminado no gume de uma faca

A solidão intermitente
Os pés descalços nos sulcos negros do areal da praia
A maré que sobe e nos cobre os lábios da cor esquecida
A doença iminente que surge e permanece
Comigo
Na solidão

Desejo = Plenitude

De mim se fez espólio num lago de unicórnios
De mim se fez noite
A imperial noite dos deuses

Soberbos membros erectos se ostentam fronte a mim
E musas
Libidinosas

A ascensão e queda da satisfação intima
Do prazer carnal
Da quimera expansiva

Da dor se fez pranto
Do pranto o orgasmo
Do orgasmo a plenitude

Plenitude, a inteireza das sensações do paganismo

Num semicerrar de olhos me dão o todo
Da vontade se condensa a combustão das labaredas

Do crepúsculo a noite
Da noite a madrugada
Da madrugada a posse
Da posse o extenuar dos corpos ávidos

Os olhos fecham
Se não se importam, devo aquietar a luz

12 agosto 2007

Escrito a dois

Floresta perdida traz-me de novo
Aos argumentos escondidos no limiar do tempo
Sucumbindo nos ritmos erguendo-se corpo
O sangue abundante que jorra dos fios do meu cabelo.

Ou as pétalas duma rosa que se agitam com o universo.

Deixamo-nos cair, mãos mortas e inversas
Atados à liberdade de não querer mais e de sim
Onde te ouço bater no escuro, pelo limiar da porta

Lábios ofegantes escutam-se
Quebramos os espelhos e tornamos a amar-nos
Sopramos com o fôlego dos crepúsculos e dizemos...

ADEUS

Falamos a linguagem dos anjos
E deuses nos tornamos.

10 agosto 2007

Vórtice

São viagens as que despontam
São vontades as que conservam
São noites, redondas e belas as que cantam
Violentas, as evidências que despertam

De fulgor de rosáceas te elevo ao cimo de mim
Só para cuidar-te
Para te penetrar ao sabor do vai e vem da tua alma

Juntos
Penteamos os segredos

Juntos
Cavalgamos fortemente a favor do vórtice profundo

Juntos
Domínio

Eu
O vórtice

Tu
A emergência

Juntos
Perecemos

Perfeito é seres o tom da noite e eu o teu olhar...

08 agosto 2007

Este rio tem os teus olhos
e com ele vou mergulhando para dentro do teu.
Só existem palavras se ditas na tua boca,
se sentidas sob o ar que respiras,
sobre o tudo que nunca morre e que sempre fica
nas margens mais profundas que só em ti encontro.
Na paisagem todo o sol é o brilho quando me olhas
e há noite toda tu me enebrias e devoras
com esse desejo dos agoras que não tardarão a vir
a nós.

01 agosto 2007

perfeitos são os dias em que cada um caminha com o outro na certeza de existirmos num só